terça-feira, 13 de maio de 2014

Porque é que a obra de Michel Foucault é cada vez mais actual?



“Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade – em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir”
(Michel Foucault, História da Sexualidade 2 – O uso dos prazeres, Rio de janeiro, Graal, 1984, p. 13)

Para se entender a importância actual do pensamento do filósofo francês Michel Foucault deve-se fazer uma leitura atenta da crise que o atravessou entre a publicação do volume 1 da sua História da sexualidade, "A vontade de saber" e a publicação do Volume 2 com o subtítulo "O uso dos prazeres". Constitui, até certo ponto, uma ruptura em relação ao Foucault associado às grandes ambições epistemológicas, ao estudo da génese da modernidade ao nível dos discursos na sua relação com o poder no campo da loucura e nas prisões. 

É um Foucault que teve uma crise, um momento crítico importante. Esse abalo vai provocar uma curiosidade obstinada pelas formas de viver na Grécia antiga "como o primeiro lugar de invenção de uma subjetivação, [...] uma rivalidade dos homens livres [em que] aquele que manda em homens livres deve ele próprio ser mestre de si mesmo."  O próprio processo de libertação dos escravos criava formas novas de vida. "o escravo libertado perdia de algum modo sua condição social e se encontrava remetido a uma subjetividade solitária, lamentosa, a uma existência elegíaca, da qual posteriormente extrairia novas formas de poder e de saber." (Deleuze) Talvez assim se compreenda a importância de muitos filósofos pré-socráticos, remetidos para a sombra com o cristianismo platónico e aristotélico. 

Foucault descobre que o que somos agora teve uma génese muito antiga remetendo para os tempos da adopção do cristianismo pelo Império Romano. A grande separação deixou de ser entre o moderno e o pré-moderno, sublinhada nas suas primeiras obras, deixou de ser o advento da sociedade industrial e do capitalismo como defendiam igualmente muitos marxistas. A grande linha de demarcação passou a ser entre, por um lado, a civilização que consagra o monoteísmo no Império Romano e, por outro, as formas de vida quotidiana em certas cidades da Grécia antiga e no antigo Egipto - ou até em civilizações não submetidas à dominação patriarcal, como é defendido pelo novo feminismo ou pós-feminismo - que foram pouco a pouco esquecidas e marginalizadas. E até reprimidas com uma crueldade jamais vista entre os seres humanos. Para Foucault, a crueldade da inquisição católica não terminou. Continua a ser a base da moderna civilização. Adoptou apenas novas formas talvez mais cruéis porque dissimuladas por uma aparente liberdade.  

Diz Deleuze:"esta nova dimensão suscitou tantos mal-entendidos que deu trabalho precisar as suas condições. Mais que qualquer outra, a sua descoberta nasce de uma crise no pensamento de Foucault, como se lhe fosse necessário modificar o mapa dos dispositivos, encontrar-lhes uma nova orientação possível."  Foi de algum modo um terremoto que abriu um novo mundo que deixou de ser limitado pela lógica académica, que o levou para o território de uma acção colectiva de novo tipo, uma resistência que deixou de se limitar aos campos tradicionais da acção política. 

De algum modo, segundo Deleuze, Foucault foi um pioneiro das novas formas de subjectivação, das formas alternativas que a partir do século XXI ganham uma nova actualidade. E estas formas já não se resumem a uma espécie de engrandecimento da Grécia antiga ou do Egipto do tempo dos Faraós como fazem muitos "new age". "Brutalmente interrompida, a investigação de Foucault devia mostrar que os processos de subjetivação assumiriam eventualmente outros modos diferentes do modo grego, por exemplo, nos dispositivos cristãos, nas sociedades modernas, etc. Não se poderão invocar dispositivos onde a subjetivação já não passa pela vida aristocrática ou a existência estetizada do homem livre, mas antes pela existência marginal do “excluído”?" (Deleuze) 


Gilles Deleuze diz justamente que: "o estudo da variação dos processos de subjetivação parece ser uma das tarefas fundamentais que Foucault deixou aos que haveriam de segui-lo." Questões novas emergem quando os dispositivos de subjectividade que passam pela existência marginal do excluído como: "o que sucede hoje em dia com a loucura, com a prisão, com a sexualidade? Que novos modos de subjetivação vemos aparecer hoje, que nem são gregos nem cristãos?" Qual o papel da resistência estética? Que novas formas deve adoptar a resistência política tendo em conta os novos tipos, apoiados nos media e no marketing, de dominação política? 


Citações de Gilles Deleuze, "O que é um dispositivo"  em: http://escolanomade.org/pensadores-textos-e-videos/deleuze-gilles/o-que-e-um-dispositivo